Na banheira entre patos e palavras.
Flávia Péret constrói um livro-diário capaz de fazer o leitor rir, sentir raiva, nostalgia, abandono; percorrer, enfim, uma miríade de sentimentos.
Uma personagem narradora está sempre em outro lugar. No caso, dividida entre a vida lá fora e a vida que precisa escrever no papel a conselho do médico?
Uma linguagem enxuta na qual cada palavra exala a sua razão de ser – razão de ser ali, naquele lugar onde está e não em outro. Em Os patos [Impressões de Minas, 2018], Flávia Péret faz a simplicidade desabrochar como grandeza. Ali, a palavra lançada no risco de uma escrita sem fim encontra sua finalidade.
Tendo como interlocutores o médico, a folha em branco e suas próprias questões, a personagem narradora cai como um patinho no exercício de escrever pensando que pode racionalmente controlar o que se produz enquanto produz.
O resultado de nadar (um pé depois do outro?) é virem à tona contradições e (auto)ironias que revelam sobre a personagem coisas que estão para além do que é dito. O mesmo acontece com o leitor, que se não estiver distraído o bastante para escutar enquanto lê, talvez perca o melhor da patacoada: afirmações disparatadas, passando pelo cômico e o espirituoso numa “bazófia” interessantíssima.
É possível cura sem palavra? É possível cura sem humor. Ou sem amor?
Num ser-estar que ao tatear palavras deixa-se embalar pelas coisas que são e estão sem que nada prove que sim e sem que nada convença que não, Flávia Péret nos embrenha em uma narrativa que nasce da mistura do que seja desejo e sintoma. Mas desejo que só gera repetição pode ser chamado desejo ou é apenas sintoma? Serão patos o que nasce depois que pactos perdem alguma coisa?
Gosto de pensar que minha escolha por dizer livro-diário e não diário em forma de livro (nem livro em forma de diário) tem a ver com a novidade de sentido que essa síntese – ao modo do próprio texto – faz nascer. A palavra livro flerta com a ideia de um livramento, aquele que a personagem conquista diariamente enquanto espera uma redenção que, ao contrário de seu próprio corpo, não está no presente mas sim em outro lugar, o lugar do inesperado.
Num livro-diário, pouco a pouco deixa-se de pagar o pato fazendo com que diferentes tempos e histórias sobre um corpo coincidam minimamente. Fazendo dos próprios sintomas uma parte integrante de seu corpo, a voz mulher por trás do diário e nas linhas dele vai construindo uma imagem – peitos, cabelos, falhas, unhas – e incorporando nessa figura também uma menina com seus fingimentos, roupas, verdades. E outras mulheres e homens e também pedaços.
Os patos é um livro inteiro escrito em pedaços. O projeto gráfico do Estúdio Guayabo dá conta de não deixar que o intimismo e o bom humor se percam também no livro-objeto, seja pelas cores escolhidas e até mesmo por um detalhe como a fonte escolhida para o texto (e pela forma com que nele algumas palavras se sublinham).
Um chupe-chupe fabricado com leite condensado com histórico de unha dá exemplo de uma das muitas passagens cômicas que comparecem para materializar todo o estranhamento, horror e necessidade de perceber que o desejo – e o gozo – são também feitos do nojo e da possibilidade de separar os nojos próprios dos alheios.
Falar dos próprios peitos e dos peitos sem leite da mãe – nojo ou prazer?
Falar do que coça, arde… Do que pica.
Falar da recusa a dizer sim a um homem como possibilidade de provocar e não apenas viver o mal-estar.
Da banheira para a lagoa.
São tantas, afinal, as poéticas e patéticas pato-logias possíveis para contar a história de um corpo. Mas não qualquer corpo: o corpo singular de uma mulher.
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